
Com 20 anos de experiência em lidar com o crime organizado, a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), afirma que o assassinato do ex-delegado-geral Ruy Ferraz Fontes foi feito com “profissionalismo” e mostra “audácia” por parte dos autores.
Ruy Ferraz foi assassinado a tiros de fuzil na noite de segunda-feira (15), em Praia Grande (SP). Ele atuou na prisão de Marcola e no combate ao PCC em São Paulo, ao longo de 40 anos de carreira policial. Atualmente, era secretário municipal de Administração de Praia Grande.
“Num crime como este, o Estado falha, o Estado perde, e o crime mostra a sua audácia, mostra que não tem limite e mostra que não tem medo da estrutura do governo”, afirma a magistrada Ivana David ao InfoMoney.
Para a desembargadora, o caso tem indícios de envolvimento do crime organizado e pode estar relacionado a investigações de que Ruy Ferraz participou quando atuava delegado ou a sua ocupação atual na prefeitura de Praia Grande.
Ivana David é especialista em Teoria da Prova no Processo Penal e integra a 4ª Câmara de Direito Criminal e a 12ª Câmara Criminal Extraordinária em São Paulo. É autora de livros e professora em temas criminais.
Confira os principais trechos da entrevista da desembargadora ao InfoMoney:
InfoMoney – Embora ainda esteja em investigação, a que a senhora atribui à execução de Ruy Ferraz?
Ivana David – O que se imagina é que o crime foi praticado por indivíduos que sabiam o que estavam fazendo, preparados. Você percebe não só na abordagem e no crime em si, mas na forma de queimarem o carro, desovarem munição. Não estamos falando de menininhos, novinhos, correndo pelo crime organizado. Tudo demonstra que existe certo profissionalismo na conduta daqueles indivíduos que a polícia já identificou, além daqueles quatro que estavam no carro. Pode ser o próprio crime organizado, pode ser desdobramento do crime organizado.
Hoje, quando se fala de crime organizado se imagina o PCC, numa comunidade humilde, traficando droga. Mas também tem crime organizado em financiamento, investimento, como foi o caso de Vinicius Gritzbach (assassinado no aeroporto de Guarulhos no dia 8 de novembro de 2024). Quem matou Gritzbach não foi o PCC, foram indivíduos envolvidos com a organização criminosa que lavavam dinheiro para o PCC e que Gritzbach delatou.
IM – A senhora acredita que o assassinato de Ruy Ferraz Fontes pode estar relacionado a alguma investigação em que ele esteve envolvido?
ID – Pode ser, porque o crime não esquece. Como o delegado Artur Dian disse, pode ser alguma coisa ocorrida há tempos atrás, porque Ruy sempre foi um delegado muito atuante, corajoso, sempre teve o cuidado de estar um passo à frente do crime. Mas pode ser uma vingança da própria facção criminosa, já que agora ele estava desguarnecido da que a polícia lhe dava quando delegado.
Ruy sempre foi um homem que teve muito tino. Muito cuidadoso, muito atento, com muita informação. Não dá para entender, por exemplo, como que ele foi trabalhar sem carro blindado, já que ele tinha carro blindado.
Tenho certeza que a polícia chegará a respostas, ainda mais que a investigação foi para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) que é um dos departamentos mais sérios de São Paulo.
IM – As mortes de Gritzbach e agora de Ruy Ferraz têm a ver com alguma mudança na política de segurança pública de São Paulo?
ID – Ruy está na história de segurança de São Paulo muito antes de tudo isso, tinha 40 anos de carreira, investigava o PCC desde 2002. Já Gritzbach era envolvido com o PCC por dívida, por lavagem de dinheiro. É outro perfil. O que dá para perceber é que o crime organizado, ou o crime, não encontra fronteiras e que não se acha intimidado pelo sistema de segurança. Quando ele tem uma missão, ele vai lá e mata.
O crime está cada vez mais audacioso, tem maior estrutura, investe em atentados como este, como investiu no assassinato do Gritzbach, e tudo girando em torno do crime organizado e do produto e do provento do tráfico de droga. A lavagem de dinheiro, a corrupção, a adulteração de combustível, a sonegação fiscal.
IM – Qual imagina que será a priorização dada à investigação do caso Ruy Ferraz?
ID – Ouso dizer que a polícia do país inteiro está envolvida nessa investigação. Todos têm o interesse de chegar aos executores e aos mandantes. Num crime como este, o Estado falha, o Estado perde, e o crime mostra a sua audácia, mostra que não tem limite e mostra que não tem medo da estrutura do governo. Como foi com Gritzbach, às 16h, no maior aeroporto do país, numa faixa de pedestre no Terminal 2. Ruy estava na Praia Grande, numa avenida movimentada, saindo da prefeitura e foi ali. Fuzilado, ainda feriram duas pessoas, então desceram do carro, mataram Doutor Ruy e quem estivesse ao lado morreria junto.
IM – A senhora acredita que houve uma mudança na política de segurança ou o crime está mais ousado?
ID – Não houve nenhuma mudança. Continua tudo igual. Você não vê investimento, os delegados continuam ganhando muito mal, você não vê estrutura. Viatura e arma não é polícia. Precisa de investimento, precisa de tecnologia, precisa mudar a lei e dar segurança para delegados, autoridades que deixam o cargo e que estão ameaçados por facção criminosa. Isso também não existe no ordenamento jurídico.
IM – O que deveria ser feito para melhorar a questão da segurança pública no Estado de São Paulo?
ID – Primeiro, investir na polícia investigativa. Não adianta fazer grandes operações, encher a cidade de viatura e o crime organizado em casa, com dinheiro, vai lá e pratica uma conduta criminosa. Só viatura na rua não resolve crime organizado, nunca, em lugar nenhum do mundo. Você precisa de investimento na inteligência, em tecnologia. Investigação de crime organizado é inteligência.
IM – Qual a sua opinião sobre o proposta da segurança pública que está tramitando no Congresso?
ID – Há dois projetos. Existe a PEC, que é essa discussão que muda uma estrutura de governo que passa pra a União. E existe uma outra, que se chama lei antimáfia, que determina, por exemplo, segurança a autoridades policiais, muda a forma de investigação.
Acho que só mudar na lei não adianta nada. Eu sou juíza há 35 anos, já passei por centenas de leis e só o papel não resolve. Não adianta mudar a lei se não tiver a coragem de quebrar o ciclo, de investir em investigação, valorizar a inteligência policial. É assim que você chega nas lideranças, tira o dinheiro do crime, fragiliza o crime organizado. Você não vai acabar com o crime organizado porque nenhum país do mundo conseguiu isso, mas pelo menos o Estado vai ter maior controle do que está acontecendo.
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