No segundo dia da invasão da Rússia à Ucrânia, um dos assessores mais próximos do presidente Vladimir Putin se recusou a seguir suas ordens.
Putin havia pedido ao assessor Dmitry N. Kozak que exigisse a rendição da Ucrânia, segundo três pessoas próximas a Kozak. Kozak recusou, dizendo que não entendia o que o líder russo queria alcançar com a invasão. Conforme a conversa foi ficando tensa, Kozak disse a Putin que estava disposto a ser preso ou até morto por não obedecer.
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Só depois Kozak descobriu que Putin havia colocado a ligação no viva-voz em 2022, segundo as fontes, fazendo com que os altos funcionários do gabinete presidencial presenciassem esse raro momento de insubordinação.
Kozak foi uma voz solitária de discordância no círculo íntimo de Putin, uma pequena brecha no controle rígido do presidente. Com poucas pessoas dispostas a desafiá-lo, Putin manteve controle quase total sobre a condução da guerra pela Rússia. Isso explica, em parte, por que, quase quatro anos depois, o líder russo mantém suas exigências duras mesmo com a pressão crescente por um cessar-fogo.
Kozak, de 67 anos, renunciou ao cargo de vice-chefe de gabinete de Putin em setembro, um mês depois que o The New York Times revelou suas críticas privadas à guerra. Em entrevistas desde então, seis russos próximos a Kozak contaram como um confidente de Putin por 30 anos se tornou um centro de sentimento anti-guerra na elite russa. A maioria falou sob condição de anonimato, por medo de retaliação por falar sobre política confidencial do Kremlin.
Kozak, o funcionário de mais alto escalão a romper com o presidente sobre a guerra, continua morando em Moscou. Ele trabalhou com Putin nos anos 1990, quando ambos eram altos funcionários na prefeitura de São Petersburgo, e acredita que seus laços pessoais lhe dão certa proteção, segundo as fontes.
Kozak não fez críticas públicas. Um conhecido seu, o analista político Arkady Dubnov, disse que Kozak recusou dar entrevista para este artigo.
Mas Dubnov afirmou que os acontecimentos desde a invasão em 24 de fevereiro de 2022 só reforçaram as opiniões de Kozak. “As avaliações dele, feitas a Putin na véspera do início da guerra, se mostraram assustadoramente corretas”, disse Dubnov, que mora em Israel.
No círculo íntimo
As mãos de Kozak tremiam quando ele subiu ao púlpito. Ele explicou, às vezes gaguejando, por que as negociações com a Ucrânia não avançavam. Disse que tinha mais a falar, mas Putin o interrompeu.
“Suponho que vamos falar disso depois”, disse Kozak.
Era 21 de fevereiro de 2022. Em uma reunião do Conselho de Segurança transmitida pela TV, os principais oficiais da Rússia apoiavam a iminente invasão de Putin.
Kozak não concordou.
Ele conhecia Putin há mais tempo do que quase todos na sala. Já havia gerenciado a primeira campanha de reeleição de Putin, coordenado a preparação para as Olimpíadas de Inverno de 2014 e supervisionado a integração da Crimeia à Rússia.
No começo de 2022, antes da invasão, Kozak negociava com a Ucrânia sobre a guerra por procuração no leste do país. Em janeiro, fez uma reunião de oito horas em Paris, que a Ucrânia chamou de “sinal muito positivo”. Vários ex-funcionários ucranianos e americanos que conhecem as negociações acreditam que Kozak realmente buscava uma solução diplomática, e não apenas ganhava tempo enquanto a Rússia se preparava para invadir.
Enquanto Putin concentrava tropas, Kozak escreveu um longo memorando apontando as prováveis consequências negativas da guerra, segundo seus confidentes. Uma pessoa que viu o documento disse que ele alertava para a possibilidade de Suécia e Finlândia entrarem na OTAN — uma previsão que se confirmou.
Em 21 de fevereiro, Kozak falou novamente ao Conselho de Segurança, em uma parte da reunião que não foi transmitida, segundo pessoas próximas a ele. Os ucranianos vão resistir, disse Kozak. As sanções serão duras. A posição da Rússia no mundo vai piorar.
Putin então pediu que todos, exceto Kozak e os membros permanentes do Conselho, saíssem da sala, segundo as fontes. Pediu que Kozak repetisse seus argumentos. Depois, dispensou todos, menos Kozak, que ainda estava no púlpito.
Eles ficaram sozinhos sob o teto abobadado do Salão de Santa Catarina do Kremlin, a cerca de 9 metros de distância.
“O que é isso?” perguntou Putin a Kozak, segundo duas pessoas próximas. “Por que você é contra?”
Kozak não cedeu. Foi a última vez que os dois conversaram antes da Rússia começar a bombardear Kiev, capital da Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro.
Recusando uma ordem
Alguns veículos noticiaram que Kozak teria ligado para Andriy Yermak, chefe de gabinete do presidente ucraniano Volodimir Zelenski, nas horas após a invasão, exigindo a rendição da Ucrânia.
Kozak disse a vários aliados que essa história é falsa. Ele afirmou que foi Yermak quem ligou para ele naquele dia. Kozak queria trabalhar para um acordo de paz o mais rápido possível, disseram as fontes.
No segundo dia da invasão, Kozak negociava um possível cessar-fogo com Davyd Arakhamia, outro oficial ucraniano, segundo três pessoas próximas. O acordo envolveria a garantia da segurança da Ucrânia pela Rússia e a retirada das tropas de todas as partes do país, exceto da Crimeia e da região do Donbas.
As negociações irritaram Putin.
Na noite de 25 de fevereiro, Kozak informou Putin pelo telefone seguro do Kremlin, segundo as fontes.
Putin repreendeu Kozak por ultrapassar seu mandato ao discutir questões territoriais e ordenou que Kozak dissesse à Ucrânia que a Rússia só negociaria a rendição. Para Kozak, Putin parecia mudar bruscamente sua posição. Ele disse que não poderia negociar se não soubesse os objetivos finais da Rússia.
Putin ignorou essas preocupações e ordenou que Kozak negociasse conforme instruído. Kozak recusou. Foi nessa ligação que Kozak disse a Putin que estava pronto para ser preso ou morto por sua recusa, disseram as fontes.
No fim da ligação tensa, Kozak concordou em informar a Ucrânia sobre a exigência russa de rendição. Ele ligou para Arakhamia, com Putin ouvindo em silêncio. Arakhamia recusou.
No dia seguinte, 26 de fevereiro, a posição de Putin mudou novamente, segundo as fontes. Pela manhã, o primeiro vice-chefe de gabinete de Putin, Sergei V. Kiriyenko, ligou para Kozak e disse que outro assessor do Kremlin, Vladimir R. Medinsky, assumiria as negociações com a Ucrânia.
Naquela noite, Medinsky e o bilionário russo Roman Abramovich foram à casa de Kozak. Disseram que iriam para Belarus negociar com a Ucrânia sob um novo mandato de Putin: discutir garantias de segurança, mas não as fronteiras da Ucrânia.
Representantes de Yermak, Arakhamia e Abramovich não responderam a pedidos de comentário. O Kremlin também não respondeu.
Desafiando o sistema
Kozak nunca mais retomou seu papel formal nas negociações com a Ucrânia. Perdeu poder para Kiriyenko, que neste ano assumiu a pasta de Kozak para gerenciar relações com outros países ex-soviéticos.
Mas não perdeu o emprego. Manteve seu escritório no prédio da Administração Presidencial da era soviética, a poucos quarteirões do Kremlin, onde se encontrou com emissários ocidentais em canais paralelos, segundo várias pessoas a par dos fatos. Ele fumava compulsivamente enquanto discutiam possíveis planos de paz. Dizia que mantinha acesso a Putin, sinalizando que o presidente russo estava ciente dessas conversas secretas.
Em um momento, o presidente sugeriu a Kozak que apresentasse propostas para melhorar o clima econômico da Rússia. Vários confidentes que viram o memorando de Kozak ficaram surpresos com ele.
O documento propunha que Putin parasse a guerra, negociasse com a Ucrânia e promovesse reformas liberais internas. Kozak sugeriu que o judiciário russo fosse independente da supervisão das agências de segurança — uma ideia quase herética, dado o poder dos serviços de segurança russos.
Alguns confidentes disseram que ficaram surpresos não só com as propostas, mas também porque ele as compartilhou fora do Kremlin, já que Putin costuma manter tudo em segredo. Disseram que Kozak parecia preocupado com seu legado e queria se distanciar de Putin.
Um legado confuso
Dubnov, conhecido de Kozak em Israel, disse que Kozak acreditava “que trabalhava para o Estado, e não para os interesses pessoais de Putin.” A ruptura entre eles, disse Dubnov, aconteceu quando Kozak percebeu, com a invasão, “que para Putin não há limites que ele não esteja disposto a ultrapassar.”
“O preço que o país está pagando pelas ambições de grande potência do seu líder ficou insuportável” para Kozak, disse Dubnov.
Como muitos da elite russa, Kozak continua leal a Putin ao evitar críticas públicas. E Putin também demonstrou certa lealdade a ele.
Kozak viajou várias vezes a Israel para tratamento médico, além de Turquia e Emirados Árabes Unidos. Isso mostrava a confiança de Putin, já que ele limitou as viagens de autoridades durante a guerra.
Em setembro, Putin aceitou a renúncia de Kozak — algo notável, já que Putin prefere manter seus altos funcionários leais nomeando-os para cargos sem função real, em vez de deixá-los sair.
c.2025 The New York Times Company
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