Cassino no bolso: apostas online atraem idosos e alimentam vício e endividamento

Homem idoso pensativo. Foto: Freepik/gpointstudio

Foi zapeando pelo Instagram que Lorena*, de 62 anos, viu uma propaganda e descobriu um aplicativo de apostas online. Na época, em 2023, chegou a apostar R$ 30, mas não se envolveu de imediato. A curiosidade, no entanto, voltaria com força no ano seguinte — e as bets e “jogos de tigrinho” logo se transformaram em um hábito frequente, que evoluiu para um vício silencioso. Entre ganhos e perdas acumuladas, a motorista de aplicativo hoje está negativada e carrega uma dívida na casa dos R$ 50 mil.

Ao InfoMoney, ela conta que ao perceber o descontrole financeiro em que estava, deixou as contas acumularem na intenção de “secar” a fonte dos recursos disponíveis para a jogatina. E sem conseguir mais honrar as dívidas acumuladas com as apostas, recorreu a um advogado para acionar a Lei do Superendividamento (14.181/2021). O objetivo é renegociar com os bancos e construir uma solução viável, sem comprometer sua estabilidade pessoal.

“Usei cartão de crédito, limite do cheque especial, fiz empréstimos. Chegou uma hora que eu pegava dinheiro para pagar as contas atrasadas por conta do jogo e, em seguida, usava o saldo que sobrava apostando. Quando ganhava, jogava mais.”

— Lorena*, 62 anos, aposentada e motorista de aplicativo

A soma da aposentadoria com a renda como motorista de Uber chega a pouco mais de R$ 8 mil ao mês, mas, segundo Lorena, o dinheiro evaporava com facilidade entre ganhos e perdas nas plataformas de apostas. Passava a noite em claro jogando, conseguindo sacar por volta de R$ 5 mil em algumas madrugadas. Mas, tão logo o dinheiro saia do aplicativo, ele voltava.

Sua última jogada foi em março deste ano e, desde então, os aplicativos foram desinstalados do celular. “Foi por vontade minha, pois estava me prejudicando muito. Quando tomo uma decisão, não volto atrás. Isso é para tudo na minha vida.”

Vulnerabilidades e o transtorno do jogo

Embora a população idosa não seja o maior público entre os brasileiros que apostam em bets e tigrinhos, é a que mais compromete dinheiro com eles. Uma nota técnica do Banco Central, divulgada no final do ano passado, apontou que pessoas acima dos 60 anos chegam a gastar uma média de R$ 3 mil por mês. Em seguida está o público 50+, que compromete até R$ 2,5 mil. 

Rodrigo Machado, psiquiatra e pesquisador do Ambulatório de Transtornos do Impulso, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), explica que os jovens são especialmente suscetíveis à dependência por ainda estarem com o cérebro em desenvolvimento. Logo depois, porém, vêm os idosos.

“É comum que essa faixa etária enfrente solidão, distanciamento social e a perda de vínculos afetivos. O vício em apostas, também chamado de transtorno do jogo, muitas vezes, surge como uma tentativa de preencher esse vazio e aliviar sentimentos negativos.”

Análise técnica sobre o mercado de apostas online no Brasil e o perfil dos apostadores – Estudo Especial nº 119/2024 – Reproduzido da Nota Técnica 513/2024-BCB/SECRE (setembro/2024).

Foi nesse contexto de rotina restrita que Paulo*, de 74 anos, acabou se tornando um alvo fácil para o vício em apostas. Técnico mecânico aposentado e viúvo, já havia se distanciado do convívio social muito antes da pandemia, limitando os laços a alguns familiares. Nem sabe dizer quando foi que ouviu falar pela primeira vez sobre bets e tigrinho. “Talvez pela TV, não sei”, tenta se recordar, pois pouco usa as redes sociais, mas assiste fielmente aos campeonatos de futebol, onde vê propagandas de casas de apostas — muitas vezes estampadas nas camisas dos times.

Em 2022, o primeiro contato foi com um aplicativo de apostas esportivas. Mas a empolgação durou pouco. A dinâmica de prever tantas possibilidades de uma partida (como placar final, jogador que faria o primeiro gol, total de cartões ou até se haveria pontuação nos acréscimos) exigia paciência e atenção que ele não tinha.

Ainda naquele ano, porém, descobriu um universo mais simples: jogos que funcionam como caça-níqueis online, como o famoso “tigrinho”. Neles, não era preciso acompanhar nenhum evento real. Bastava girar a roleta e deixar que os algoritmos definissem tudo.

“Comecei apostando R$ 50, vez ou outra. Às vezes perdia, mas com mais frequência ganhava o dobro ou mais. Foi virando algo que fazia quase todo dia, até começar uma maré de azar. Quando dei por mim, limpei minha poupança com R$ 30 mil”

— Paulo*, 74 anos, técnico mecânico aposentado

Segundo Machado, o envolvimento com jogos de azar provoca uma estimulação intensa do sistema de recompensa do cérebro — a mesma estrutura responsável por processar situações com potencial de gratificação. Essa ativação ocorre por meio da dopamina, neurotransmissor que não representa o prazer em si, mas sim o desejo, a motivação e o impulso para buscar uma recompensa. 

A liberação de dopamina, rápida e intensa, gera uma sensação imediata de expectativa e excitação. E quando há exposição repetida a comportamentos gratificantes, como as apostas, os “circuitos cerebrais” começam a se modificar. “Esse processo é semelhante ao que ocorre em dependências químicas, como o uso de álcool”, explica o psiquiatra. Só que, com o tempo, o sistema de recompensa vai ficando hipersensibilizado. “O prazer diminui e o indivíduo precisa aumentar a frequência, o tempo ou o risco das apostas para sentir o mesmo nível de excitação inicial.”

Epidemia do vício e proteção aos idosos

Dados da 8ª edição do Raio-X do Investidor Brasileiro, realizado pela Anbima em parceria com o Datafolha, mostram que 23 milhões de brasileiros fizeram apostas por meio de aplicativos em 2024, equivalente a 15% da população com mais de 16 anos. Entre os apostadores, quase metade (47%) está endividada. O levantamento também aponta que 30% admitem apostar mais do que podem perder, enquanto 10% já recorreram a empréstimos ou venderam bens para continuar jogando.

No Congresso Nacional, tramita o Projeto de Lei 4466/24, propondo mudanças no Código Civil e no Estatuto da Pessoa Idosa a fim de, não apenas garantir serviços de atenção à saúde mental, sobretudo no combate e tratamento ao vício em jogos (ludopatia), como também ampliar a proteção jurídica desse grupo.

Caren Benevento, sócia da Benevento Advocacia e pesquisadora do Grupo de Estudos do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP (GETRAB), comenta que a proposta busca coibir abusos relacionados a vício, manipulação e exploração financeira. Entre os pontos destacados, estão a exigência de medidas preventivas em ambientes físicos e digitais que promovam jogos e apostas, além da possibilidade de que idosos reembolsem valores gastos, desde que comprovado o prejuízo devido à dependência ou condutas abusivas.

“O PL é abrangente, e contempla qualquer modalidade de jogo de azar — presencial ou digital — incluindo apostas esportivas, fantasy games, cassinos online e os populares ‘jogo do tigrinho’ ou ‘bets’”, frisa. No entanto, o sucesso da proposta depende de ações coordenadas entre Ministério Público, Defensoria, órgãos de fiscalização e mecanismos de controle digital. “Precisa vir acompanhado de ações concretas que garantam sua aplicação, e que ajudem a romper o ciclo de exploração, especialmente quando se disfarça de entretenimento.”

Outro ponto previsto do projeto diz que o governo deve oferecer educação financeira adequada à pessoa idosa. Sobre esse tópico, Ana Paula Hornos, educadora financeira e psicóloga clínica, ressalta que a medida é fundamental, mas não suficiente, já que atua na camada racional da situação. “Ajuda a estruturar o orçamento, compreender riscos, identificar fraudes e manter limites saudáveis de consumo. No entanto, o vício em jogos nasce no campo emocional, e se consolida em dinâmicas psicológicas profundas.” 

A especialista frisa que o combate ao vício necessita de afeto, acolhimento e presença de familiares e rede de apoio. “Conversas frequentes e empáticas, sem infantilizar ou controlar, mas promovendo parceria, são essenciais”, diz. Além disso, Hornos destaca que a prevenção precisa ser integrada e, no caso dos idosos, aliando educação financeira com estratégias de prevenção ao vício, como:

– psicoeducação sobre o funcionamento do vício e seus sinais precoces; 
– criação de rotina estruturada, com atividades significativas e recompensadoras que substituam o vazio que o jogo tenta preencher; 
– promoção de vínculos sociais e sentido de pertencimento, que combatem a solidão, um dos maiores gatilhos; 
– supervisão e apoio terapêutico, especialmente nos casos em que há luto, depressão ou transições importantes (aposentadoria, viuvez, mudança de residência); 
– tecnologia a favor do cuidado, como bloqueios de sites, alertas de gastos e co-gestão financeira consensual. 

Sinais da dependência e ajuda

Depois que a bonança deu lugar à maré de azar, chegou um momento em que a família de Paulo percebeu que algo estava acontecendo. Sempre ansioso, inquieto e munido do celular em mãos a todo instante. Para justificar o novo comportamento, inventou uma namorada virtual. “Acreditaram, e até justificava porque eu estava gastando dinheiro. Mentia que eram presentes ou ajuda [financeira] para ela”, diz. Isso perdurou entre 2023 e 2024, até que, sem o conhecimento do aposentado, um dos filhos revirou seus extratos bancários, descobrindo que a poupança estava quase zerada. 

“Era um dinheiro que juntei enquanto trabalhava, para complementar a aposentadoria”, conta. Mesmo após esse episódio, não parou de jogar. Passou, então, a contratar empréstimos e usar o cheque especial, comprometendo a aposentadoria de pouco mais de dois salários mínimos ao mês. “Foi assim até o começo do ano, quando meus filhos passaram a controlar meu celular e contas bancárias”, conta. Ele prefere não revelar há quanto tempo está sem apostar e diz que busca sempre se lembrar da época em que jogos não faziam parte da sua rotina.

Lorena, por outro lado, não conheceu o universo das apostas com a chegada dos aplicativos de celular. Como muitos brasileiros, já era habituada a jogar na loteria e até teve alguns acertos ao longo dos anos. “Fiz duas vezes 14 pontos na Lotofácil, uma quadra na Quina e uma quadra na Mega-Sena. Eu gosto de jogos, infelizmente”, admite. Mas seu interesse não se restringia às casas lotéricas.

A motorista chegou a frequentar bingos, tanto nos tempos em que eram legalizados quanto depois, na clandestinidade. Costumava ir em busca de distração, especialmente quando enfrentava momentos difíceis ou tensões familiares. No salão de jogos, conseguia desligar-se das preocupações. “Ganhava e perdia nessa época, mas meu saldo ainda era positivo e não havia prejuízos, diferente de agora”, ressalta. 

As experiências relatadas por Lorena e Paulo vão de encontro aos sinais do vício em jogos. Machado destaca que eles incluem: mentiras, alívio para um estado de humor negativo, preocupação para voltar a jogar, problemas financeiros, perda de controle e até sintomas de abstinência. Para aqueles que ainda não preenchem todos os critérios de vício, ter dívidas ou prejuízo nas relações familiares, acadêmicas ou no trabalho por conta do jogo podem ser sinais a serem considerados.

Ainda assim, o psiquiatra lembra que o adoecimento não ocorre da noite para o dia, mas após a repetição e exposição recorrente às apostas. O modelo atual de jogos online, com ciclos rápidos e múltiplas apostas, estimula mais o cérebro e aumenta a chance de vício em comparação com o passado. “Nunca antes as pessoas tiveram a possibilidade de ter um ‘cassino’ no próprio bolso. Isso ganhou ainda mais força com a abertura do mercado das bets, a partir de 2018”, afirma. 

O tratamento demanda ajuda profissional multidisciplinar (que podem incluir psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais), mas Machado ressalta que o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda carece de estrutura adequada para lidar com o avanço dos casos de dependência em apostas. Diante disso, reforça a importância dos grupos de apoio, como o Jogadores Anônimos (veja endereços e telefones aqui), que têm atuado como um suporte importante. “Eles acabam sendo essa linha de frente de auxílio quando a gente sabe que o acesso ao tratamento especializado é mais difícil.”

*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados para preservar suas identidades

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