DETROIT — Em 2021, depois que a Apple desistiu de seus planos sigilosos de construir um carro elétrico autônomo, Doug Field deixou a empresa de tecnologia para embarcar em uma missão impossível destinada a salvar a indústria automobilística dos Estados Unidos.
Ele voltou para a Ford Motor Co., onde havia começado sua carreira décadas antes, com a grande ambição de projetar veículos elétricos que permitissem à empresa centenária competir com montadoras chinesas, cujos modelos fazem enorme sucesso entre consumidores e vêm quebrando recordes globais de vendas.
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Field sabia que os velhos métodos de Detroit não serviriam. O tempo era curto, e para sacudir a montadora histórica ele criou uma espécie de startup automotiva — um laboratório secreto perto de Los Angeles, com um escritório-satélite no coração do Vale do Silício, que ele chamou de “skunk works” (equipe de projetos especiais).
Ele recrutou engenheiros e designers de fabricantes de veículos elétricos como Tesla, Rivian e Lucid, além de startups de baterias, eletrônica e software, e prometeu a eles o tipo de liberdade criativa que trabalhadores de tecnologia consideram padrão.
Para blindar seu projeto contra interferência corporativa, ninguém que não estivesse na equipe selecionada por Field podia nem sequer entrar pela porta. Sem exceções.
“Eles puderam começar do zero”, disse Field sobre a Tesla, fundada há pouco mais de duas décadas e que, na prática, criou o mercado de carros elétricos. “A gente precisava ter um lugar dentro da Ford com essa mesma oportunidade.”
A indústria automotiva está passando por uma mudança como não via desde o início dos anos 1900, quando o Modelo T de Henry Ford e a linha de montagem móvel transformaram a economia e a forma como as pessoas se deslocavam. A onipresente charrete puxada por cavalos foi parar em museus, enquanto inúmeros outros negócios se tornaram obsoletos.
A Ford e outras montadoras tradicionais agora encaram esse tipo de obsolescência, especialmente à medida que empresas chinesas como BYD e Geely avançam rapidamente, produzindo 60% de todos os veículos elétricos do mundo.
A melhor esperança é ultrapassar os chineses ao produzir baterias melhores, motores elétricos mais eficientes e outras inovações — e depois repetir o processo continuamente. E as melhores chances de que isso aconteça estão nas mãos de pessoas como Field, que tentam ensinar Detroit a ser tão inovadora quanto o Vale do Silício.
“Eu sabia que seria um desafio completamente diferente de qualquer coisa que eu tivesse feito antes”, disse ele, “que era tentar mudar o rumo de uma grande organização.”
Ninguém sabe como essa disputa vai terminar, mas já há sinais de que as montadoras ocidentais estão ficando ainda mais para trás. Muitos dos modelos elétricos mais inovadores e acessíveis delas ainda estão a anos de distância. O primeiro veículo de Field nem deve chegar às lojas antes de 2027.
Field, que também já trabalhou na Tesla e na Segway, está plenamente ciente de que equipes como a dele carregam o destino de toda uma indústria nas mãos. Mais de 4 milhões de norte-americanos trabalham em fábricas de automóveis e autopeças, concessionárias e oficinas.
O presidente Donald Trump está determinado a fazer o relógio andar para trás no que diz respeito a carros elétricos, chegando a derrubar padrões rígidos de eficiência de combustível que beneficiavam esses veículos. Mas, como grande parte do mundo se afasta de vez do motor a combustão, executivos do setor veem pouca alternativa senão manter o curso.
“A maior parte das nossas vendas é fora dos EUA”, disse Jim Farley, CEO da Ford e chefe de Field, “e estamos dando de cara com os chineses.”
“Espaço para avançar”
Uma coisa a favor das montadoras ocidentais em desvantagem é que há muito espaço para melhorar como os carros elétricos são feitos — e não faltam empreendedores ambiciosos tentando aproveitar essa chance.
Uma startup da região de Boston, a AM Batteries, é uma entre várias empresas trabalhando em máquinas que podem reduzir o custo de fabricação de baterias. O equipamento criado pela startup forma camadas de lítio, níquel e outros materiais em células usando um pó seco em vez da pasta líquida usada na maioria das fábricas hoje.
A tecnologia elimina a necessidade de um longo processo de secagem, não gera químicos tóxicos e encurta a linha de montagem, economizando tempo e dinheiro. E, se puder ser usada em larga escala, a abordagem da empresa tornará as baterias — a parte mais cara de um carro elétrico — mais acessíveis.
“O que me tira o sono é saber que engenheiros na China e no Japão estão fazendo a mesma coisa”, disse Lie Shi, CEO da AM.
A AM, cuja lista de investidores inclui os braços de capital de risco da Toyota e da Porsche, é uma entre dezenas de empresas jovens buscando maneiras de tornar os veículos elétricos mais baratos e práticos.
Daqus Energy, em Woburn, Massachusetts, tenta fabricar baterias a partir de materiais orgânicos abundantes, em vez de metais caros como lítio, níquel e cobalto. A Estes Energy Solutions, de San Francisco, está desenvolvendo uma forma de encapsular células de bateria que as deixa mais leves.
A Niron Magnetics, em Minnesota, está trabalhando com a Stellantis, fabricante do Jeep e de outras marcas, em substitutos para metais de terras raras necessários aos motores elétricos, para que as montadoras não dependam de fornecedores chineses. Há muitos outros exemplos.
“Há muito espaço para avançar com essas tecnologias”, disse Brian Potter, engenheiro estrutural que recentemente escreveu o livro “The Origins of Efficiency”.
Apesar de inovadoras, as startups não resolvem tudo: no fim, a responsabilidade recai sobre a Ford e outras montadoras tradicionais — acostumadas a mudanças graduais — para reformular sua forma de trabalhar.
A equipe californiana de Field desenvolveu uma picape de médio porte montada de um jeito que mostra o tipo de inovação que talvez seja a melhor esperança da indústria automotiva dos EUA.
As seções dianteira e traseira da picape serão moldadas a partir de alumínio derretido em máquinas gigantes, em vez de serem soldadas e coladas a partir de centenas de peças, como a maioria dos carros é feita hoje.
O método permite que a Ford instale painéis e outros componentes internos antes de encaixar as grandes seções ao redor da bateria. Os trabalhadores da linha de montagem não precisam se inclinar de maneira desconfortável dentro do carro, como acontece na maioria das fábricas hoje.
A montagem será tão mais eficiente e barata que, quando a picape chegar ao mercado, custará US$ 30.000, disse a Ford — não muito mais do que a Ford Maverick movida a gasolina, que é menor.
Mudar rápido ou ser atropelado
Embora os carros chineses estejam praticamente barrados nos Estados Unidos por tarifas altas e outras restrições, concessionários Ford em lugares como Bangkok, Londres e Cidade do México já estão enfrentando montadoras chinesas que oferecem veículos de alta qualidade a preços baixos, disse Farley em uma entrevista recente em Detroit.
Se a Ford e outras montadoras americanas não conseguirem defender seu território, correm o risco de virar fabricantes de nicho, limitadas a grandes beberrões de gasolina vendidos só nos Estados Unidos.
“Eu tenho 10.000 concessionários no mundo. Apenas 2.800 estão nos EUA”, disse Farley. “Então faça as contas.”
Na Tailândia, por exemplo, o utilitário esportivo Ford Everest a gasolina acomoda sete pessoas e custa 1,2 milhão de baht (US$ 37.700). Um BYD M6 elétrico acomoda seis e custa US$ 26.000.
“É a maior batalha da minha carreira”, disse Farley.
A inquietação de Farley ecoa por toda a indústria automotiva. Veículos elétricos, incluindo híbridos plug-in, representam cerca de 10% das vendas de carros novos nos Estados Unidos, mas na Europa chegam a quase 30%, e na China passam de 50%.
Se isso não bastasse, as montadoras americanas ainda enfrentam oscilações bruscas na política federal. Trump, que rejeita a ciência climática, reverteu políticas de energia e automóveis que datavam até do governo de George W. Bush.
Tecnologias inovadoras podem ser a salvação da indústria automotiva dos EUA — mas apenas se forem fabricadas aqui. Historicamente, nem sempre foi assim. A bateria de íons de lítio foi desenvolvida majoritariamente em laboratórios universitários e corporativos dos EUA, Reino Unido e Japão. Mas, hoje, o maior fabricante de baterias de íons de lítio para carros é a CATL, empresa chinesa fundada em 2011.
As empresas ocidentais precisam se mover rápido. Desenvolver um veículo totalmente novo e montar uma linha de produção pode levar até sete anos. Fabricantes chineses conseguem colocar um modelo novo nas concessionárias em metade desse tempo — às vezes menos.
Para acelerar o desenvolvimento de seu veículo elétrico mais recente, um utilitário esportivo chamado iX3, executivos da BMW visitavam engenheiros e designers em seus escritórios a cada quatro semanas, em vez de exigir que eles fossem até a sede em Munique para obter aprovações.
As equipes foram incentivadas a ignorar as barreiras tradicionais entre divisões corporativas. Especialistas em tecnologia de espuma que projetavam bancos foram convocados para encontrar o melhor tipo de espuma para isolar baterias, garantindo resistência a fogo e colisões no novo modelo.
Os engenheiros da BMW se orgulham especialmente de um visor digital panorâmico que se estende pela base do para-brisa do carro, mostrando direções e outras informações sem exigir que o motorista tire os olhos da estrada.
A empresa planeja começar a vender o iX3 nos Estados Unidos em 2026 por cerca de US$ 60.000. Ele deve percorrer 400 milhas com uma carga completa e pode ser recarregado em um carregador rápido em apenas 21 minutos.
Mas, mostrando como é difícil ficar um passo à frente da China, a Xiaomi — fabricante de smartphones e carros em Pequim — começou a vender um carro com um visor panorâmico similar ao da BMW. E alguns novos modelos da BYD podem ser reabastecidos em menos de 10 minutos em carregadores ultrarrápidos que a empresa começou a instalar na China.
Recomeçar
Em seu “mosteiro” em Long Beach, Califórnia, a equipe de Field na Ford — que incluía Alan Clarke, responsável pelo desenvolvimento de novos veículos na Tesla — jogou fora o antigo organograma. Designers responsáveis pela estética trabalhavam lado a lado com engenheiros de aerodinâmica encarregados de reduzir a resistência do ar. Tradicionalmente, essas equipes ocupavam escritórios separados.
Os designers e engenheiros sabem que “vocês dois têm a mesma missão: criar algo eficiente e incrivelmente atraente”, disse Field, que credita aos pais sua apreciação tanto pela engenharia quanto pela estética. Seu pai era engenheiro químico, e sua mãe era artista e musicista.
Field, que viveu no Texas, Indiana, Canadá e Connecticut durante a infância, seguiu caminho próximo ao do pai e estudou engenharia mecânica na Universidade Purdue. Mais tarde, obteve mestrados em engenharia e administração no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Enquanto a Ford tomou uma decisão incomum ao isolar essa equipe longe de sua sede, outras montadoras como Mercedes-Benz, GM e Honda também instruíram funcionários a criar o que a indústria chama de “projeto de folha em branco” — um que não esteja preso a modelos anteriores ou a velhos métodos de trabalho.
Dan Cook, CEO da Lyten, fabricante de baterias em San Jose, Califórnia, disse que acredita na criatividade e na disposição para assumir riscos que tantas vezes colocaram os Estados Unidos na vanguarda de novas tecnologias, como computadores e microchips.
A Lyten está desenvolvendo baterias feitas principalmente de lítio e enxofre, materiais extremamente baratos e amplamente disponíveis nos Estados Unidos. Se a empresa conseguir produzir em massa, o resultado serão baterias mais baratas e leves que não dependem de materiais chineses.
“O Vale do Silício existe por causa da liberdade de inovar”, disse Cook, que iniciou sua carreira na GM, “e da liberdade de pensar e errar.”
A tarefa de Field agora, disse ele, é unir o século de experiência de manufatura da Ford com esse tipo de inventividade. Conforme o veículo se aproxima da fase de produção, ele vem permitindo que mais pessoas atravessem o fosso do “skunk works”. A equipe agora tem um escritório-satélite em Dearborn, Michigan, cidade natal da Ford.
“Fazer com que uma empresa grande consiga produzir alto volume e alta qualidade e ainda assim inovar seria uma força com a qual ninguém conseguiria competir”, afirmou.
c.2025 The New York Times Company
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